Santa IF
Publicado originalmente por encomenda da revista Facta, #3, em 2014.
Tita escuta uma gravação em MP3 de pura estática de rádio enviada por um contato que diz viver no interior. Poderia ser gerada por algoritmos e ela não saberia a diferença, mas valeu a pequena quantia em mBTC que ela enviou pela transação. Em Sampa é quase impossível encontrar uma faixa sem emissora FM para sintonizar somente o ruído. Vozes a deixam deprimida. Música rítmica já induziu surtos de epilepsia mais de uma vez. A estática a ajuda a neutralizar o oceano de cabeças e corpos que andam por aqueles lados.
Ela costuma circular bem pela região, mesmo além do núcleo da Santa IF. Mas é o terreno daquelas seis ruas que ela conhece tanto quanto as pontas das unhas coloridas. Sabe proferir os nomes certos em cada uma das galerias, mesmo depois das reformas e relocações. Dá bom dia, graceja e chama pelo nome as putas, os vigias, os chapistas fumando cigarro do lado de fora da padaria, os traficantes e P2. E, naturalmente, os colegas de atividade. Como outras pessoas, Tita conhece os caminhos para encontrar qualquer tipo de equipamento, software ou conjunto de dados, e algumas pessoas sabem disso. Tem poucos clientes, mas eles pagam bem. Passa boa parte do tempo ouvindo estática e esperando algum pedido especial.
Mas aquela tarde de quinta foi estranha. Primeiro uma tontura que por uma fração de segundo desfez seu semblante usualmente duro. Naquele momento veio à sua mente a lembrança do Velho.
Fazia tempo, talvez já houvesse se passado uma década. Tita costumava gastar o parco arsenal hacker em uma lan house na Vila Matilde, executando scripts garimpados na internet — entre outras coisas para descobrir o que as outras pessoas no recinto pesquisavam, liam e escreviam nos computadores que usavam. Em uma daquelas tardes, um senhor no fim da sala começou a rir. Ele usava um casaco bege, comprido. Falou em voz alta e grave uma frase estranha que ela nunca esqueceria: “tem talento, sobrinha”. Em seguida, o computador que ela ocupava exibiu uma tela azul com as mesmas palavras. Ela levantou-se de um salto, sacou a carteira para pagar e sair o mais rápido que conseguiu e se mandou de skate para casa, sem esquecer de percorrer o caminho em ziguezague e verificar se estava sendo seguida. Tinha escapado. Mas quem seria aquele tio?
Nas semanas seguintes, Tita receberia e-mails enigmáticos em duas contas diferentes que até então tinha se esforçado para manter independentes. As mensagens inicialmente a deixaram aterrorizada, mas com o tempo ela ficou curiosa. Quando percebeu, já estava trabalhando na equipe de coleta e processamento de dados do Velho. Foi uma grande escola e uma época de ouro. Futuros brilhantes, talentos mutuamente desenvolvidos e dinheiro razoável. Até que o Velho desapareceu sem deixar rastros, e nem seus treinados seguidores conseguiriam encontrar qualquer pista.
A segunda surpresa naquela tarde, enquanto ela ainda se recupera da tontura e da lembrança, é ver ao longe o passo lento e firme de P. Ele veste um casaco de moletom verde estampado de círculos pretos e com um capuz longo e pontudo que esconde totalmente seu rosto. Mas para boa observadora todo caminhar tem sua particularidade. Isso, e as velhas botas marrons sem língua, deixando entrever as meias através dos cadarços. Tita sabe que ao perceber o ex-colega, já não faz sentido ceder ao impulso de se esconder.
P já a avistou, e não estará ali por acaso. Como de se esperar, ele se aproxima com um sorriso e a abraça rapidamente. Em seguida, sem cerimônia como de costume, começa a fazer pedidos. Os dois estão lado a lado, falando baixo.
- Ti, estou precisando de umas coisas.
- Imagino. Chaves ou dados?
- Na real hoje só tô em busca de hardware.
- De que tipo? Rack, storage, cluster?
- Nada disso, só coisa pra levar. Um pitópe e um telinha. Limpos, zerados e sem peixe. De preferência IP67 e duráveis.
- Hm. Entendi. Mas…
- O quê?
- Por que aqui? Por que comigo? Hoje em dia cê encontra essas coisas em qualquer esquina ou na internet mesmo.
- Ah, bom saber que cê tá acordada, Ti. Cê sabe, não confio em qualquer um.
Tita encara P com um sorriso duro.
- À merda, você. Fala ou fui.
- Calma, moça. Como eu dizia, preciso de um pitópe e um telinha. Mas pode encomendar um par de cada, se quiser. Estou voltando ao jogo, e me pediram pra te convidar a ir junto.
Tita fica em silêncio, olhando para o lento tráfego dos carros na Santa IF. Como em qualquer outro momento do horário comercial, milhares de pessoas circulam por ali para gastar dinheiro em produtos eletrônicos que daqui a menos de dois anos já estarão no lixo, potencialmente contaminando aterros com material tóxico.
- Assim, sem aviso? Ele tá vivo? Pra onde ele foi?
- Se eu soubesse, não sei se poderia te falar. Mas na verdade ainda não sei quase nada. Recebi um sinal em papel e três confirmações, seguindo o protocolo. Se é golpe, tá muito bem feito.
- E quais são as condições?
- Jogo cego, carona passa no sábado à tarde. Pelo que entendi, tem mais gente da nossa. Parece coisa importante. E divertida. Vamos?
Ela olha mais uma vez para P, o olhar entre incrédulo e esperançoso. Sua pálpebra direita treme.
- Não sei o que dizer agora. Vou pensar nisso e te respondo amanhã. Mas vou providenciar o equipamento. Como te encontro?
- Sim.
Ela tira do bolso lateral da perna direita do macacão um cartão SIM selado, arranca a etiqueta com o número, e entrega o restante para ele.
- Amanhã 11h. Protocolo. Chave… pode ser “diacinza”.
- Combinado. Lave suas roupas hoje porque eu sei que cê vai topar.
P puxa o capuz para a frente, como que para esconder ainda mais o rosto, e sai. Tita pensa consigo: “também acho, seu puto”.