Gambiareia

Felipe Fonseca
5 min readDec 10, 2018

Publicado originalmente por encomenda da revista Facta, #4, em 2016.

A pé. Fones de ouvido conectados ao telinha. Não por acaso, escuto a trilha sonora de Código 46. O calor está ameno, o sol já se pôs há algumas horas. Cruzo avenidas de asfalto liso e carros velozes, explorando mentalmente o mapa que evito consultar no bolso. Algumas famílias passeiam pelo parque que margeia a orla, e isso ainda me causa estranhamento. Não as famílias em si, exceto talvez pelo horário. Mas é o próprio parque que tem um quê de irreal. Só em volume de água — dessalinizada, bom lembrar -, estes milhares de metros quadrados de grama devem consumir mais do que regiões inteiras do semiárido brasileiro. Isso para não falar de energia, ferramentas e trabalho. Mas aqui tudo é assim.

Estamos na borda entre o mar e o deserto. Mas esta cidade faz de tudo para esconder isso. Um segredo entre tantos outros. No meu caminho, algumas pistas — rastros humanos nesse lugar quase vazio de registro histórico. Uma revista e um capacete ao lado de uma tampa de bueiro. O carrinho de supermercado abandonado no meio-fio, emborcado de lado. Um par de botas de trabalho encostadas numa parede baixa. A falha no calçamento ainda esperando os bloquetes, recordando que são pouquíssimos centímetros que dividem a cidade quase cenográfica da infinita areia.

Todo esse cenário artificial, um gigantesco canteiro de obras com prédios brilhantes & bregas atirando lasers para as nuvens, avenidas novas e shopping centers, é na prática produzido com mãos e habilidades humanas, e a construção está longe de acabar. Pessoas construindo um país que não é delas. E nem é para elas, de maneira profunda e clara.

Fui convidado a passar duas semanas por aqui como residente em uma universidade. Estou trabalhando com dez estudantes do mestrado em design. São brilhantes. Oito são mulheres, que afluem para cá em busca de horizontes mais amplos de estudo, ainda raros nos outros países árabes.

A residência é sobre gambiarra e cultura do conserto, um tema que neste lugar soa algo estranho. O Catar é um país rico, cuja forma atual foi construída de maneira acelerada com recursos oriundos da exploração de gás natural. A VCUQ, minha anfitriã, é na verdade uma universidade estadunidense (Virginia Commonwealth University) que tem uma unidade aqui em Doha. Está sediada na “Cidade da Educação”, uma iniciativa do governo local que instalou por aqui cinco universidades estadunidenses em um campus moderno. Grande parte dos professores são europeus. Contam com laboratórios totalmente equipados, uma sala com amostras de materiais (centenas, milhares de itens?) e uma biblioteca muito completa e agradável.

O antigo rei, que há poucos anos abdicou em favor do filho, já sabia que o gás natural vai acabar, e quis criar alternativas para garantir que no espaço de algumas décadas a economia não dependa só dele. Investiu — de forma bem caricatural, mas vamos lá — em mídia, tecnologias, turismo e outras áreas. Sua esposa criou uma fundação voltada à educação que financia projetos em todo o mundo. Mas o país continua tendo características bem particulares.

Por aqui, os habitantes não pagam impostos, e cidadãos locais (uns 15% da população atual) têm educação e saúde de graça. A mão de obra para atividades menos qualificadas vem do sudeste asiático. Cargos técnicos e administrativos de alto nível são usualmente ocupados por europeus e estadunidenses, exceto no setor ligado à extração de gás que é o favorito dos jovens Cataris e no qual têm preferência de contratação.

Juntando um altíssimo poder de compra e o baixo nível de enraizamento ou mesmo afeto entre sociedade e território, o resultado não poderia ser diferente de um consumismo que chega à obsessão.

Um aluno relatou que o que mais se faz nas horas vagas por aqui é comprar coisas. Isso não me surpreende, assim como também não difere tanto do estilo de vida de muitas pessoas que eu conheço em São Paulo. No Catar, entretanto, tudo é superlativo. Compra-se muito, usa-se quase nada. Consequentemente, as coisas são descartadas compulsivamente.

Meu destino hoje não foi o mercado central remodelado para o turismo, nem algum dos museus internacionais sediados em prédios assinados por arquitetos famosos, ou algum hotel internacional em cujo bar o álcool seja permitido. Fui na verdade a um hipermercado de origem francesa que fica dentro de um shopping center, para comprar crédito para meu telinha e petiscos para comer nos horários em que não tenho refeições garantidas no hotel.

O shopping me incomodou menos do que eu esperava. Muito parecido com lugares similares no Brasil, exceto pela enorme diversidade étnica/nacional e de vestuário. Curiosamente, a gente perde de longe neste tema. Por outro lado, ele tinha também a pista de esqui no gelo, as lojas internacionais, o fast food e outras coisas usuais nessa cultura homogênea e entediante do shopping center. Mas além de tudo vi muitas sacolas de compras, e não consigo parar de pensar no destino de todas estas coisas.

Na inauguração da minha residência, conversei com os estudantes sobre lixo, descarte e reuso. Apresentei vídeos: Ilha das Flores; Comprar, tirar, comprar; alguns trechos do Lixo Extraordinário; Digital Handcraft. Uma aluna comentou que aqui as pessoas simplesmente jogam as coisas fora, mas que pensando bem, este “fora” não existe.

Essa não é uma ideia nova, mas aqui torna-se ainda mais radical. No Catar, jogar fora é atirar ao implacável deserto ou a um mar disputado. Um dos professores contou o causo de que o país teria chegado a construir uma planta para reciclagem de diversos materiais, com os equipamentos mais avançados que o dinheiro podia comprar. Mas não chegou a ativá-la porque não existe mercado local para matéria-prima reciclada (não existe indústria). E exportá-la pelo mar aumentaria muito o preço de venda. Resultado: a própria planta de reciclagem foi também deixada no deserto para desaparecer.

De modo geral, todo o grupo de estudantes estava ciente de questões sobre o impacto ambiental da produção industrial e do mundo contemporâneo. Mas, até como reflexo das dinâmicas da sociedade local, isso não figurava como prioridade no trabalho de nenhum deles. Para focar nestas questões, decidimos fazer uma etapa de pesquisa de campo. Durante os próximos dias, vamos visitar profissionais ligados aos consertos e à fabricação artesanal: alfaiates, marceneiros, relojoeiros, sapateiros. Sairemos também em busca de cemitérios de automóveis e pneus, situados no meio do deserto. Por fim, vamos fazer dois dias de Repair Cafe nas dependências da universidade, chamando a atenção para estas questões e criando uma oportunidade para que os próprios estudantes ponham as mãos na massa.

Enquanto percorro o caminho de volta ao hotel, uma ansiedade se mostra de leve. Estou tentando descobrir em que medida a gambiarra faz sentido como recorte de criatividade tática, solução desobediente de problemas cotidianos e construção de futuros diferentes (e melhores). Olho em volta mais uma vez, respiro fundo e escuto o som nos fones. Topo com mais uma daquelas cenas que lembram a natureza humana de quae todo o trabalho feito por aqui: uma luva, sozinha na calçada. Neste lugar, acho que a gambiarra sempre ocupará um lugar subalterno. Escondida, indesejada, alheia aos mecanismos de decisão. Mas está lá sim. E deve se espalhar pelo mundo, cada vez mais.

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Felipe Fonseca

Marie Curie Fellow / PhD Candidate at OpenDoTT https://opendott.org (Northumbria University / Mozilla Foundation). Living in Berlin.